sábado, 4 de abril de 2009

Bandeira Branca

Conto do Erico Veríssimo só que com um final meu.
Fiz pra um concurso em 2007. Apesar de nao ter ganho o concurso, o fim ficou muito bom
confere ai
:


Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
- Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse - Até o Carnaval que vem - e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.



***



No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma - disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
- Nem me fala. E o toureiro?
- Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse -Píndaro?! - e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi - pelo menos o meu tirolês era autêntico - e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo - não vale, você cresceu mais do que eu - e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.



agora começa a minha parte ( ou melhor "intromissão") no conto do Veríssimo



Ele: feliz. Ela: triste. Era Carnaval, mas não estavam no clube como das outras vezes. Ele estava andando apressado pela rua, atrasado para o chope com os amigos. Ela andava cabisbaixa e lentamente, sem a alegria dos outros carnavais, levando consigo mais malas do que seus braços poderiam suportar. A rua estava cheia de foliões.
- Ah, me desculpe – disse ele após ter esbarrado nela, deixando cair as malas que levava consigo.
Ele se abaixou para ajudá-la a pegar as malas caídas no chão, quando se deu conta de quem era a mulher.
- Eu te conheço de algum lugar...
- Acho que não – disse ela.
- Ah, conheço sim... Eu sou o Píndaro. Lembra?
Os dois riram por um instante de si mesmos. Não posso acreditar que a encontrei novamente, pensava ele. Ele esqueceu-se do chope e convidou-a para irem ao seu apartamento, que ficava ali perto, para conversarem.
Ela hesitou por alguns instantes, mas logo aceitou o convite.
- Realmente preciso descansar um pouco da viagem. E ainda preciso realizar a missão impossível de pegar um táxi nessa cidade em pleno carnaval.
Eles andaram um pouco e logo estavam no apartamento dele.
Ela disse-lhe que não havia mais ido ao clube no carnaval porque sua tia morrera e ela não tinha mais como ir, já que a tia é quem era sócia do clube. Contou-lhe como havia se casado sem sucesso e que agora estava focada em sua vida profissional. Na verdade ela estava mesmo era querendo justificar sua falta de sorte no amor. Estava se mudando para a cidade porque queria se especializar em sua carreira de bailarina.
- Eu sabia que você seria bailarina! Sempre dançou muito bem – disse ele.
Ele também não conseguiu chegar inteiro aos 30 anos, como já havia previsto. Passou por algumas namoradas, mas nada sério e não estava muito feliz com seu emprego de assistente administrativo. Seu chefe o “sugava”, como costumava dizer.
- Acabei de sair do meu trabalho.
- Mas você estava trabalhando no carnaval!?
- É. Tive que fazer umas horas extras pra cobrir o cheque especial.... E não vejo mais muita graça no carnaval como nos tempos de garoto.
- Mas como não vê mais graça no carnaval?
É por causa da sua ausência que não ligo mais para carnaval, pensava ele. Mas não teve coragem de dizer.
Depois de conversarem muito, ele foi até a estante e começou procurar por algo.
- Achei. – disse ele carregando nas mãos um disco antigo todo empoeirado.
Ele foi até o seu velho aparelho de som e pôs o disco a tocar.
- Lembra-se dessa música? – perguntou ele.
- Ah, aquela música que tocava ao final dos bailes.
- Vamos dançar mais uma vez. Eu nunca dancei com uma bailarina.
- Mas é claro.
Ela o puxou e foram sendo levados pelo som da Bandeira Branca e pela recordação dos tempos de baile. Não posso acreditar que estou novamente dançando com ela, pensava ele. Ele sentia os braços dela o enlaçando novamente como na última vez. Os seus olhos a penetravam fixamente. Chegaram mais perto um do outro. Os lábios dele vieram ao encontro dos dela. Eles se beijaram com tanta intensidade como nunca. Ele podia sentir seus pés flutuando serem levados pela bailarina.
- Agora eu tenho que ir – disse ela, se afastando dele.
Ela pegou suas malas rapidamente e correu em direção a porta, afinal no mundo dos 30 anos não é assim tão fácil se entender. Ele foi atrás dela. Não podia perdê-la novamente. Dessa vez não. O elevador nunca demorou tanto para subir assim, pensava ele.
Ela saiu tão apressada pela rua que nem percebeu o carro que vinha em sua direção. O seu corpo foi arremessado para longe, enquanto o carro corria ainda mais rapidamente para que ninguém o identificasse. Ele chegou a tempo de ver toda a tragédia.
Tudo estava acabado, pensava ele. Ela estava morta e ele também. Morto por dentro. Com um vazio ainda maior que o dominava. Ele foi até ela e a lavou com suas lágrimas, enquanto cantarolava Bandeira Branca para niná-la em seu sono eterno.