quinta-feira, 15 de abril de 2010

Receita para o artista

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Que benefícios nos proporcionam os novos livros! Gostaria que cada dia me caíssem do céu, a cantaros, os livros que exprimem a juventude das imagens. Esse desejo é natural. Esse prodigio fácil. Pois lá em cima no, céu, não será o paraíso uma imensa biblioteca?
Mas não basta receber, é preciso acolher. É preciso, dizem em uníssono o pedagogo e a dieteticista, "assimilar". Para isso, somos aconselhados a não ler com demasiada rapidez e a cuidar para não engolir trechos excessivamente grandes. Dividam, dizem-nos, cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas darem necessárias para melhor resolvê-las. Sim, mastiguem bem, bebam em pequenos goles, saboreiem verso por verso os poemas. Todos esses preceitos são belos e bons. Mas um princípio os comanda. Antes de mais nada, é necessário um bom desejo de comer de beber de ler. É preciso desejar ler muito, ler mais, ler sempre.
Assim já de manhã, diante dos livros acumulados sobre a mesa, faço ao deus da leitura a minha prece de leitor voraz: "A fome nossa de cada dia nos dai hoje..." "
Gaston Bachelard. A Poética do Devaneio. Tradução de Antonio de Pádua Danesi.

sábado, 3 de abril de 2010

Enjoo

A barriga parecia ter vida própria. As contrações dimininuíram progressivamente seus intrervalos até atingirem a uniformidade. Uma única dor. O peito já não tinha ar. Os músculos contraídos enquanto o suor descia. A mulher passava e fingia não ver. "Essa menina aí fingindo que está com dor só pra não me ajudar..." - pensava. O ar escapava dos pulmões tão intensamente quanto da panela de pressão. O tique-taque quase mudo assumia níveis ensurdecedores para Ela. Bem que a mãe tinha avisado sobre o chocolate. Branco e preto envolvidos no crime. A culpa era dos pedaços de caramelo. Correu para o banheiro. Há muito tempo que não vomitava. Da última vez ainda não usava sutiã e tinha a chupeta como objeto de adoração. Era mesmo o chocolate. E junto dele os restos do macarrão do jantar. Todo o banheiro estava sujo. Agora Ela ia ter que ajudar na limpeza.
Saiu do banheiro. A mãe passou e olhou a bagunça. Bradou algumas palavras de reprovação que Ela nãe escutou. Deu à mãe a solução para o delito: voltou ao banheiro com vassoura, um pedaço de pano velho e um vidro com um líquido azul.
O estômago ainda doía, mas Ela bravamente resistia com esfrogões no chão e mordidas no lábio. Mas não se arrependia. Afinal, os doces eram presentes dEle. Ela parou um instante para respirar. Já não aguentava mais as contrações. Sentou no chão molhado e começou a suspirar olhando para o céu azul turquesa entre a janela apertada do banheiro. "Ah, Ele é tão atencioso, tão carinhoso..." - sussurava baixinho. A causa do enjoo era a mesma do suspiro.
- Menina! Está parada porque, hein?! Não viu que ainda está sujo! - gritava a mãe.
Ela fez uma careta secreta aos olhos da mãe e voltou ao trabalho.
- Já até sei. Deve estar pensando naquele menino. Já disse pra você tomar cuidado, menina. Esses meninos são terríveis. Eu já fui adolescente... Meninos dessa idade não querem nada sério. Toma cuidado menina.
Foi aí que Ela teve um susto. Um susto que interrompeu as dores por um instante. As palavras da mãe já eram conhecidas por ela. Mas dessa vez, as circunstâncias eram outras. O enjoo. Ela, então, lembrou do rosto dEle naquela noite. Ele a transmitia segurança e suas palavras começaram a resoar na mente dEla: "Você não vai engravidar... Eu sei o que estou fazendo." Bem que a mãe tinha avisado sobre o menino. Mas não tinha avisado sobre a camisinha. Ele e Ela envolvidos. A culpa era da imprudência? Do impulso da juventude? O fato era que a prova estava ali na frente dela, gosmenta e suja, escorrendo entre os ladrilhos do banheiro.