terça-feira, 10 de agosto de 2010

Lavagem

O véu branco lhe cobria a cabeça. O traje preto lhe cobria o corpo. Uma ave Maria lhe cobria a culpa. Os joelhos, já esfolados, permaneciam firmes como se tivessem raízes naquele chão. Os olhos compenetrados nos olhos da Virgem.
Já era tarde. A outra Irmã que lhe fazia companhia na viagem já dormia há horas. Mas Laura insistia. O terço era parte inerente a ela. E ela continuava suas preces constantes.
A penumbra e o terror invadiam o espaço. Só se via a sombra de Irmã Laura à luz de um candeeiro. À medida que a vela ia se consumindo, o ardor da Irmã aumentava. Seu coração batia forte e sua pele, quente, lateja. Entretanto, ela não vacilava em sequer uma das rezas e seu corpo era como uma estátua, inerte. Nem as gotas de suor que iam escorrendo por baixo de seu vestido, nem a luz que ia se acabando, nem a madrugada pareciam a incomodar. Sua penitência era seu dever. Seu sofrimento era sua redenção.
- Ave Maria cheia de graça...
E não cansava de repetir a prece. Se cansasse, desagradaria a Virgem. Suas palavras firmes ecoavam baixinho pelo aposento apertado.
- Bendita sois vós entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.
Os ruídos dos carros na rua se confundiam com os sussurros da Irmã.
- Santa Maria, a mãe de Deus, rogai por nós pecadores...
Os punhos alinhados eram pressionados um contra o outro fortemente, como se alguém os tivesse acorrentado.
- ... Agora e na hora de nossa morte.
E a luz acabou. Está Consumado.
- Amém.
Ela então foi se levantando devagar, tentando equilibrar o peso das vestes. Estava limpa de seu pecado, mas embebida em suor. Tateou até encontrar a mesa de cabeceira e acendeu o abajur. Olhou para o lado. Queria tirar as roupas, mas precisava se certificar de que sua companhia não acordaria. “O corpo deve ser coberto para que a ilusão de suas formas não seduza a ninguém” – lembrava de suas palavras naquela manhã. O quarto compartilhado não fora sua decisão. Entretanto a Irmã já estava acostumada a se trocar na penumbra. Temia que fosse ela própria enganada por sua carne nua.
Tirou primeiro o véu encharcado. Apertou-o contra as mãos. Era preciso expurgar o maligno. Abaixou-se para puxar as vestes, então escutou um barulho. Um sussurro de vozes distantes. Gritos de mulher ao longe.
Irmã Laura se apressou até a janela com cuidado para não acordar sua companheira de quarto. Abriu devagar as cortinas. A janela já estava aberta. O vento quente lá de fora soprava contra seus cabelos molhados de suor. Esticou um pouco o pescoço. Já podia ver de onde vinha o barulho.
Três mulheres. Uma loira, duas morenas. A esquina deserta ficava preenchida pela presença delas. Seus corpos delineados pela pouca roupa que vestiam. Seu rosto acentuado pela maquiagem borrada. Irmã Laura, debruçada sobre a janela, acompanhava a cena. Seus olhos seguiram em direção a loira.
Ela estava com uma calça de couro. Um sutiã de lantejoulas pretas completava o figurino. Os olhos dela chamaram a atenção da Irmã. Eram pequenos. Suaves e pequenos. Estavam apertados entre a sombra rosa e os cílios postiços. Mas a Irmã foi capturada por eles.
O suor voltava a escorrer pelo seu corpo. Agora, com muito mais intensidade.
A loira deu uma risada. Alta e vulgar. O olhar de Laura agora estava cativo a boca da mulher. Lábios macios e vermelhos. Vermelhos de batom e de pecado. Era como se a Irmã visse sangue escorrendo pela boca da loira. Sangue impuro, maldito.
Laura estava quente. Sua mão foi até os lábios. E os tocava com lascívia. Sua língua fresca lambia os dedos um por um. O jejum estava quebrado. Em sua boca havia sangue; em seu estômago, a loira; em seu coração, pecado.
Um carro parou bem em frente aquelas mulheres. O vidro foi se abaixando. A loira foi até ele. Tentou olhar para o motorista ainda de pé. Foi se reclinando na janela do carro.
Laura agora penetrava seus olhos na bunda da mulher. A carne comprimida pelo couro. As coxas se batiam uma a outra, enquanto a mulher negociava com o suposto cliente.
Laura desceu suas mãos até suas pernas. Levantou as vestes. Precisa de toque. Precisa segurar seu corpo. Precisa de desejo. Apertou suas pernas e foi deslizando suas mãos por elas. Seus olhos já não olhavam, mas exprimiam sua libido.
As mãos agora apertavam suas nádegas. Todo seu corpo fervia. Ela queria ser desejada. Precisava disso. Sua pele gemia cada vez que seus dedos se atreviam a andar pelo corpo.
E os seus dedos passaram então a dançar. Eles percorriam o corpo de Laura sem rumo. Sua boca começou a soltar gemidos quase mudos.
Laura queria ser como a loira. Desejada. Procurada. Vulgar. Entretanto não havia lugar para inveja. O único sentimento que ela sentia era desejo. E ele a ocupava por completo. Todo seu corpo estava prostrado. As gotas de suor agora a limpavam de outra forma. Não havia mais espaço para pecado. Não havia espaço para santidade. Não havia espaço para mais nada.
O relógio despertou. Depressa, a Irmã correu até o banheiro. As vestes deslizaram a um só movimento. Abriu o chuveiro.

4 comentarios:

Bia Petri disse...

Seu blog novo está lindo!

Saudade de você!

Beijos.

Mariana disse...

João, saudade de você no blog: você nunca mais apareceu. Dei uma reformulada também, e mudei o endereço: http://thmari.blogspot.com/

Apareça por lá, gostava de seus comentários.

Ah, sim: lindo texto: "Não havia mais espaço para pecado. Não havia espaço para santidade. Não havia espaço para mais nada."

Beijos.

Publicidade Esportiva disse...

Fala Aê João! Meu amigo blogueiro.

Eu tbm dei uma reformulada no Publicidade Esportiva e agora ele é .com.br

O endereço: http://www.publicidadeesportiva.com.br

O Outro continua acessando tbm...

www.publicidadesportiva.blogspot.com/

Apareça por lá, gostava de seus comentários.

Como a Mariana falow... Realmente lindo texto: "Não havia mais espaço para pecado. Não havia espaço para santidade. Não havia espaço para mais nada."

Abraços

T. disse...

SENSACIONAL!!!! gostei muito!

ahh, to de volta, baby. e esse seu layout é muito profissional...